Ouço a voz, acordo, procuro o celular embaixo do
travesseiro. 3h30. Mais uma noite mal dormida e a certeza de receber o mesmo
chamado na próxima madrugada.
Encaro essa tensão há duas semanas, já quase me acostumei
com a voz. A primeira vez que ouvi senti calafrios e enorme pavor. Esse
calafrio já esmaeceu. Levanto e me movo na esperança de viver normalmente.
Outra noite, o sono me vence às 0h00. Escuto a melodiosa voz
de criança. Vem dançar com a gente mãe... Ela pede com riso na voz. Essa madrugada além do pedido ouço a música. Respect Aretha Franklin. O calafrio e
pavor voltam com toda a força. E se estiver enlouquecendo? E se não estiver?
Meu eu cético não sabe qual a pior das alternativas.
Saio de casa às pressas. Na rua a bruma me alcança e me
envolve. Um homem vem em minha direção, outro tipo de medo me cerca. Um mais
palpável do tipo que estampa manchetes de jornais.
Penso em correr, em gritar, procuro meu celular, mas deixei
embaixo do travesseiro. É tarde. Ele me alcança. Deve ter 50 anos e me estende
um folheto evangélico. Respiro aliviada e toco em sua mão ao pegá-lo.
Imagens invadem minha mente. Duas menininhas dançam. Vem
dançar com a gente mãe a pequenininha chama. A luz fria do inverno penetra as janelas.
Em uma velha radiola a poderosa voz de Aretha Flanklin ressoa, a mãe finalmente
aparece, ela é jovem e está feliz, as três dançam. A porta é aberta. Um homem
entra. A dança para. O riso cessa. Em seu lugar choro e ranger de dentes. Dessa
vez ele foi mais brutal, a menininha não poderá mais chamar sua mãe pra dançar
e ela e sua irmã não poderão dançar também, tampouco. Vejo seu rosto de criança
no fim e refletido em sua pupila está à imagem do homem do folheto.
Retorno a minha consciência e percebo que tudo durou apenas
frações de segundos. Ele ainda está recolhendo a mão que me estendeu o folheto.
Deixo-o se afastar e o sigo. Ele para em uma praça próxima e aborda estudantes
e trabalhadores com seus folhetos. Espero. No meio da manhã ele se move. O
acompanho. Próximo a um terreno abandonado cato uma grande pedra. Me apresso e
o alcanço. Bato em sua cabeça. Sei o que tenho que fazer. O arrasto mais para
dentro. Golpeio a pedra em direção ao seu crânio até sentir os ossos moles.
Tenho que sair daqui. Há sangue em minha roupa. Ando com falsa tranquilidade de
volta pra casa. Passo o dia apreensiva, assisto os noticiários. Uma notícia
sobre sua morte, a polícia não tem pistas.
Me recolho para dormir. Essa noite não ouço o chamado. Acordo,
vou trabalhar. Me sinto em paz.
Na volta pra casa pego um táxi. Recebo o troco. Toco na mão do taxista. Imagens invadem minha mente, vejo mulheres acuadas e seu riso de
deboche refletido na pupila delas. Topei com um estuprador. Volto à realidade. Sei
o que tenho que fazer.
Ainnnnnnnnnnnnnnn
ResponderExcluirAmei! O melhor de todos na minha opinião!
Li já 50x
Perfect
To felicíssima que tu tenhas aprovado Carol. Minha autocrítica anda nas alturas ultimamente. Bjão.
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